O enigma do medronheiro

O medronheiro (Arbutus unedo) entrou na minha vida pela porta discreta das serras portuguesas, mas o trilho que levou até ele começou muito antes, nas savanas distantes que eu via em criança nos documentários de televisão. Havia então uma árvore africana, a marula (Sclerocarya birrea), envolta em histórias tão fascinantes quanto inverosímeis.

Víamos nesses documentários jovens elefantes, macacos, javalis e antílopes a cambalearem junto às marulas, numa coreografia que parecia nascida do próprio fruto caído e fermentado. Aquelas imagens, filtradas pela infância, tinham para mim a intensidade de um assombro primitivo, como se a natureza guardasse ali um enigma vindo de terras distantes.

Durante anos aceitei esse espetáculo sem desconfiança, sem imaginar que por detrás daquela dança havia um tema complexo, que ainda hoje convoca investigadores. A relação profunda entre animais, frutos fermentados e substâncias capazes de moldar o comportamento.

Não é apenas mito ou fantasia. É um território de dúvida fecunda, onde as perguntas continuam vivas e a ciência avança com cautela, reconhecendo que há fenómenos que ainda escapam à medição exata.

O que hoje se conhece é mais complexo e infinitamente mais interessante. Trabalhos recentes realizados em Botswana mostraram que os frutos da marula abrigam uma comunidade surpreendentemente rica de leveduras selvagens, capazes de transformar os açúcares do fruto em etanol em quantidades relevantes. 

Estas investigações revelaram que a marula fermenta com rapidez e que, em teoria, a sua composição aromática e alcoólica pode influenciar o comportamento de várias espécies frugívoras.

Os próprios autores reconhecem que esta fermentação cria condições plausíveis para estados de intoxicação, ainda que insuficientes para afirmar que elefantes, macacos ou outros mamíferos africanos chegam realmente a embriagar-se na natureza. A narrativa permanece num território intermédio, onde a observação popular e a curiosidade científica avançam lado-a-lado, à espera de provas que desfaçam ou confirmem o enigma.

Ao mesmo tempo, a investigação mais recente sobre o papel ecológico do etanol nas paisagens naturais trouxe uma revelação discreta e profunda. O álcool não é uma extravagância humana, mas uma presença discreta e constante nos ecossistemas. 

Frutos muito maduros ou caídos acumulam pequenas percentagens de álcool por fermentação espontânea, inúmeros animais frugívoros consomem-nos como parte da sua rotina alimentar.

Sabe-se hoje, por exemplo, que os chimpanzés podem ingerir diariamente quantidades equivalentes, em termos relativos, a um copo de cerveja humano, sem sinais de embriaguez, porque metabolizam o etanol com natural eficiência.

Há também registos de aves e pequenos mamíferos que, ao comerem frutos fermentados ou néctares alcoólicos, exibem comportamentos compatíveis com desorientação, estes, sim, descritos com maior detalhe. Assim, o consumo de substâncias psicoactivas naturais por animais deixou de ser mera anedota para se afirmar como parte reconhecida da ecologia evolutiva.

É neste amplo contexto que sempre coloquei o medronheiro. Em Portugal, foi a árvore que, no meu imaginário, mais se aproximou da marula africana. Nos meus anos de estudante na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, novembro tinha um ritual próprio.

Caminhávamos demoradamente pelo campus à procura dos medronhos mais maduros, quase rendidos ao toque, vermelhos, rugosos, carregados daquela doçura que só o frio sabe intensificar.

Havia anos de abundância e anos de quase absoluto vazio. Só mais tarde percebi que essa oscilação é bem conhecida pelos produtores, falam de anos de safra e de contrassafra, descritos pela ciência como variabilidade interanual marcada, condicionada por geadas, secas, ventos fortes durante a floração e pelo estado fisiológico das plantas.

Tal como aconteceu com a marula, também o medronheiro gerou o seu próprio mito, a ideia teimosa de que comer muitos frutos poderia provocar tonturas ou até uma pequena bebedeira. Hoje sabemos que os frutos maduros na árvore praticamente não contêm álcool e que não existe qualquer registo clínico ou experimental de embriaguez em adultos por consumo de medronhos frescos.

O único cenário plausível, embora nunca comprovado, seria o de uma criança pequena comer frutos caídos já em início de fermentação, mais vulnerável ao álcool por ter menor densidade corporal e metabolismo ainda imaturo, ecoando aqueles relatos de juventude em que tantos lembram uma leve atordoação, o rosto a aquecer, o riso a nascer sem esforço ou uma breve sensação de desequilíbrio depois de devorar medronhos em excesso.

Mas a embriaguez que realmente conhecemos é outra. É a da aguardente que o ser humano soube extrair destes frutos, destilada em alambiques de cobre nas serras de Monchique e do Caldeirão, guardada como património cultural e económico, protegida por indicação geográfica e sustentáculo de muitas famílias deste sul serrano.

O medronheiro, porém, é muito mais do que os seus frutos. É autóctone de Portugal continental e atravessa o país inteiro, firmando-se em solos pobres, subindo encostas íngremes, insinuando-se por ravinas profundas, ocupando clareiras de mato mediterrânico.

Adapta-se ao xisto, ao granito, ao calcário e até a solos mais delgados, exibindo uma versatilidade rara entre as espécies autóctones. Nos Açores surge sobretudo na Terceira, como espécie introduzida, e na Madeira apenas por mão humana.

A sua biologia tem uma cadência singular. As flores aparecem no outono, quando tantas plantas recolhem energias, e oferecem alimento vital aos polinizadores. Ao mesmo tempo, os frutos do ano anterior amadurecem devagar até janeiro, criando uma continuidade que poucos arbustos conseguem igualar.

As raízes prendem os taludes, amparam a erosão e favorecem a infiltração de água. Depois dos incêndios, rebenta com um vigor quase instintivo a partir da base, tornando-se peça essencial em muitos programas de restauro ecológico.

Nas serras do Sul, o fruto do medronheiro ganhou um peso económico e cultural que atravessa gerações. A sua colheita, fermentação e destilação deram forma a uma fileira que reúne pequenos produtores, cooperativas e um saber transmitido durante gerações.

A aguardente que daí nasce condensa numa gota a paisagem serrana e o engenho humano. Em paralelo, os seus frutos alimentam compotas, doces e licores, e o mel de medronheiro, escuro, amargo e riquíssimo em compostos fenólicos, destaca-se como um dos méis mais singulares de toda a flora portuguesa.

A compreensão científica desta espécie tem-se aprofundado progressivamente. Investigadores estudam a sua diversidade genética, procuram linhagens mais tolerantes à seca, analisam a sua resposta ecofisiológica ao fogo, descrevem compostos bioactivos com interesse nutracêutico e integram o medronheiro em modelos de mosaicos agroflorestais concebidos para enfrentar as pressões crescentes das alterações climáticas.

Assim, a espécie deixou de ser apenas um elemento tradicional da paisagem para se afirmar como protagonista nos debates sobre o futuro ecológico do país.

Partilho uma bela curiosidade sobre a cidade de Madrid, que escapa ao olhar apressado de tantos viajantes. No centro da Puerta del Sol ergue-se a figura de um urso empinado sobre as patas traseiras, estendendo-se para alcançar os frutos de um medronheiro.

Símbolo heráldico da capital espanhola desde a Idade Média, reúne numa única imagem a cidade e esta árvore persistente, celebrando a fertilidade, a resistência e a ligação profunda entre território e identidade.

E, no entanto, quantos passam diante dessa estátua sem reconhecer naquele arbusto de copa arredondada o nosso velho conhecido, o mesmo medronheiro que cresce nas serras portuguesas?

E quando deixo que todas estas imagens se aproximem, a árvore africana que continua a despertar investigação, os chimpanzés que convivem com o etanol natural dos frutos, os mamíferos que por vezes cedem ao apelo dos frutos fermentados e o medronheiro português com os seus globos vermelhos a iluminar o inverno, revela-se uma continuidade inesperada entre ecologia, comportamento animal e cultura humana.

E é nessa linha que o medronheiro encontra o seu lugar. Não como fonte de embriaguez, mas como espécie que entrelaça ciência, paisagem, economia rural e a memória sensível de quem o encontra nos caminhos do nosso país.
 
 



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Bolotas e a soberania alimentar

Imagine-se perante um carvalho. Feche os olhos. Respire o seu aroma de madeira antiga. Volte a abri-los e imagine agora uma plantação viva, extensa, ondulante, ocupando dezenas, centenas, milhares de hectares. Não para produzir madeira. Não para adornar paisagens.

Mas para alimentar seres humanos e animais, como um grande pomar de troncos robustos e copas largas, uma verdadeira cultura agroflorestal de longa duração, tão portuguesa como o pão que nos acompanha desde sempre.

A provocação é simples e poderosa. Sabia que as bolotas de várias espécies de Quercus são um dos alimentos mais antigos dos nossos antepassados ibéricos?

A arqueologia confirma o seu uso desde a Pré-História. Em inúmeros sítios escavados por toda a Península Ibérica surgem bolotas carbonizadas, utensílios de trituração e vestígios de armazenamento que revelam uma prática alimentar antiga e persistente, a balanofagia, o consumo humano de bolotas.

Durante milénios, muito antes de o trigo ou o centeio moldarem as primeiras civilizações agrícolas, as bolotas foram alimento quotidiano, reserva energética e sustento das comunidades que habitavam estes territórios. Era a comida que a terra oferecia sem exigir arroteias, irrigação ou lavoura, um recurso generoso que marcou de forma profunda a nossa história alimentar.

Séculos mais tarde, quando chegaram ao continente novas culturas vindas de longe, a batata trazida das Américas, o milho dourado dos conquistadores, o arroz que viria a transformar os campos alagados do Sul, as bolotas já tinham alimentado gerações incontáveis. Foram sustento, reserva, pão e companhia desde tempos imemoriais, muito antes de qualquer um destes alimentos assumir o protagonismo que hoje lhes reconhecemos.

A história repete-se em ciclos. A bolota, que alimentou os nossos antepassados desde a Pré-História, voltou a ser tábua de salvação em tempos de privação. Nos montados e carvalhais do século XX, sobretudo durante as décadas marcadas pela Guerra Civil Espanhola, pela Segunda Guerra Mundial e pela pobreza extrema no meio rural, muitas famílias alentejanas sobreviveram graças a ela.

A memória oral recolhida no Alentejo é clara e profundamente viva. Gente que apanhava bolota nos montados onde os porcos pastavam, crianças que a comiam como conduto da escola, mulheres que a cozinhavam com arroz, feijão ou couve, homens que enchiam sacos durante a noite para vender aos compradores ambulantes. O fruto seco que hoje olhamos com desatenção foi, durante séculos, pão de vida.

A diversidade das espécies de Quercus portuguesas permitiu esta relação profunda. Temos o sobreiro (Quercus suber), soberano das terras mais atlânticas, e a azinheira (Quercus rotundifolia), resistente às amplitudes térmicas do interior. No Norte surgem os carvalhais de folha caduca, com o carvalho-alvarinho (Quercus robur), o carvalho-português (Quercus faginea) e o carvalho-negral (Quercus pyrenaica). Todas estas espécies produzem bolotas comestíveis, embora com características distintas.

A ciência confirma aquilo que a tradição sempre soube. A bolota de azinheira é, em geral, a mais doce e a menos adstringente, graças ao seu teor mais reduzido de taninos, o que a torna naturalmente mais fácil de consumir e é hoje uma das espécies reconhecidas para consumo humano no espaço europeu.

As restantes espécies, embora igualmente nutritivas, pedem cuidados de preparação, sobretudo a remoção dos taninos que lhes conferem amargor. Assim surgem técnicas antigas para retirar os taninos e devolver doçura ao fruto, como a lixiviação em água corrente durante dias, a cozedura prolongada ou a desidratação lenta, que transformam a dureza inicial num alimento delicado e saboroso.

Cada árvore é um mundo. Mesmo dentro da mesma espécie, a variabilidade genética faz com que existam árvores particularmente doces, conhecidas localmente e procuradas geração após geração. É este diálogo entre diversidade natural e conhecimento humano que mantém viva a arte de comer bolota.

Os saberes tradicionais são um património delicado. No passado, sabiam conservar as bolotas durante todo o ano, usando técnicas engenhosas que hoje reaprendemos com surpresa. Avelavam-nas (processo natural de desidratação lenta e controlada). Guardavam-nas em arcas de madeira, virando-as regularmente para evitar humidades, permitindo que murchassem e ganhassem doçura.

Fumavam-nas na chaminé, em cestos feitos de rebentos de oliveira, durante semanas, obtendo um fruto seco de sabor profundo, durável e nutritivo. Cozinhavam-nas em sopas, em pastéis, em bolos e ainda preparavam um “café” de bolota torrada, muito apreciado.

Mas o século XXI trouxe algo novo. A ciência voltou a escutar a tradição e empresas portuguesas, inspiradas nos antigos modos de fazer, começaram a resgatar a bolota e a transformá-la em alimentos modernos, saudáveis e sustentáveis.

Os estudos realizados em Portugal demonstram o seu potencial nutricional. Revelam que as bolotas são ricas em hidratos de carbono complexos e apresentam teores interessantes de ácido oleico e linoleico, bem como de antioxidantes, vitamina E e compostos fenólicos.

Não contêm glúten, o que as torna acessíveis a mais pessoas, e possuem amidos que conferem às massas uma textura estável e qualidades tecnológicas muito apreciadas na panificação e na pastelaria.

A investigação conduzida pela Universidade do Porto, pela Universidade de Évora e por equipas multidisciplinares de agroecologia e tecnologia alimentar tem vindo a caracterizar várias espécies e a validar cientificamente o que a tradição já sabia. A bolota é um alimento completo, versátil e seguro.

O trabalho pioneiro da Herdade do Freixo do Meio marcou um antes e um depois na fileira contemporânea da bolota. Em 2008 surgiu ali o primeiro produto moderno transformado a partir deste fruto. A partir desse gesto inaugural nasceu também uma narrativa de regeneração ecológica, de economia circular, de valorização do montado e de inovação com sentido.

Outras empresas seguiram o caminho. Hoje encontramos farinhas de bolota, bolotas desidratadas e descascadas, bebidas vegetais, compotas, cremes de barrar, pastas salgadas, bombons, biscoitos, broas, pães e infusões.

A farinha de bolota fina e estável, produzida com processos de secagem controlada, permitiu a padronização de receitas e abriu portas à exportação. Hoje, algumas empresas portuguesas exportam produtos de bolota para vários países europeus, do pão às farinhas, dos biscoitos às compotas, revelando o potencial económico desta fileira.

Está demonstrado que as espécies Quercus faginea, Quercus rotundifolia, Quercus suber e Quercus pyrenaica produzem bolotas comestíveis e nutricionalmente relevantes. As diferenças na composição destas espécies ampliam as possibilidades culinárias e tornam a bolota um ingrediente versátil para explorar novos caminhos gastronómicos.

Mas o caminho da bolota não se esgota na ciência nem na economia. Estende-se para lá disso, porque é também uma proposta ecológica e uma decisão estratégica. Num país que importa mais de metade dos alimentos que consome, torna-se urgente criar alternativas sólidas e de longo prazo que reforcem a soberania e a resiliência alimentar.

É fundamental promover alimentos ajustados ao clima mediterrânico, capazes de suportar a seca, crescer sem irrigação intensiva, regenerar solos e dar estabilidade aos ecossistemas.

Os carvalhos respondem a estas questões com uma sabedoria antiga. São árvores de elevado valor ecológico, estruturantes do território e capazes de produzir alimento durante décadas ou até séculos, mesmo em condições adversas.

Imaginemos, então, montados e carvalhais multifuncionais, concebidos como verdadeiros pomares silvestres. Sistemas agroflorestais que produzem proteína vegetal, gordura saudável, fibra e antioxidantes, enquanto sequestram carbono, protegem o solo, aumentam a infiltração de água e preservam a biodiversidade.

Um país onde a bolota é novamente ingrediente quotidiano, base de farinhas, pães, cafés, cremes, bebidas e doces. Escolas a ensinar as crianças a reconhecer as diferentes espécies de carvalhos e a transformar bolotas. Imaginemos chefs a reinventar a culinária ibérica a partir de um alimento milenar.

Os projetos em curso vão nesse sentido. Existem grupos de investigação dedicados à valorização das bolotas do género Quercus, projetos de mapeamento genético, estudos sobre tecnologias de processamento e iniciativas de economia circular. Há também esforços que recuperam práticas antigas para lhes dar utilidade contemporânea, aproximando o saber tradicional da investigação mais recente, criando oportunidades para o desenvolvimento rural.

Empresas emergentes integram a bolota em cadeias de valor locais, reforçando a economia dos montados e carvalhais, enquanto alguns agricultores ensaiam modelos de recolha, secagem e transformação com baixo impacto energético.

A bolota não é apenas alimento. É proposta. É caminho. É memória e futuro. É ferramenta de resiliência num tempo em que as cadeias de distribuição globais se mostram vulneráveis.

É recurso abundante num país que já foi dominado por carvalhais e que pode voltar a ser, com inteligência, cuidado e visão ecológica. É oportunidade para criar sistemas alimentares verdadeiramente mediterrânicos, adaptados ao nosso clima, à nossa história e à nossa cultura.

Talvez seja este o momento de olhar para os carvalhos com outros olhos. Não apenas como sombra ou madeira. Mas como alimento. Como soberania. Como resiliência. Como promessa de um país que se reencontra com as suas raízes para garantir o seu futuro.
 

 

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A luz guardada nas árvores

Quando acendemos a lareira, pensamos muitas vezes que estamos apenas a queimar madeira. Mas o que arde ali é outra coisa. É luz. Luz antiga. Luz partilhada. A chama que se ergue diante de nós é o regresso do Sol que as árvores guardaram durante anos.

Aquele calor não é apenas calor. É o eco de fotões que viajaram desde a superfície solar até às folhas de um carvalho, de um castanheiro, de um pinheiro. 

Fotões que iluminaram verões da nossa infância, tardes de praia, caminhadas no campo, momentos em que crescíamos distraídos do facto de que uma árvore, serena e paciente, recolhia essa mesma luz para nos a oferecer de novo um dia.

Durante décadas, a árvore recebeu o Sol que também nos banhou. Cada primavera em que renascia, cada verão em que alargava a copa, fazia aquilo que apenas os seres fotossintéticos sabem fazer. Transformava claridade em substância.

Convertia energia luminosa em matéria, fabricando açúcares que depois arrumava com cuidado no tronco, prendendo o brilho dos dias em ligações de carbono que se tornavam madeira. Anel após anel, a árvore foi arquivando esta luz, solidificando o passar das estações, guardando dentro de si as primaveras que também nós experienciamos.

Por isso, quando uma árvore tem a nossa idade, a sua combustão é o regresso de uma claridade que atravessou as mesmas estações que nós.

Aquele fogo liberta a luz dos verões que nos viram crescer, a mesma radiação que tocou a nossa pele quando éramos crianças maravilhadas com as marés, com o voo dos insetos, com o cheiro das algas, com o ruído das pinhas a estalar ao sol.

Adolescentes que descobriam o mundo sem pressa, encantados com o rumor das árvores, com o brilho do rio depois da chuva, com a dança lenta das nuvens sobre o campo. Adultos que aprenderam a abrandar diante da vastidão tranquila do horizonte, onde a luz pousa sem exigir nada.

Todo esse Sol que um dia nos aqueceu o rosto ficou também guardado no tronco que agora colocamos na lareira. 

A ciência explica o milagre com simplicidade desarmante. Graças à fotossíntese, a árvore captou energia solar e usou-a para construir moléculas ricas em ligações químicas. Ficaram presas ali, no lenho, sob a forma de celulose, hemicelulose e lenhina. A madeira tornou-se um cofre de luz. 

Quando o fogo se aproxima, esse cofre abre-se. O calor quebra as ligações que a árvore criou ao longo da vida e a energia regressa ao mundo como chama viva, como claridade quente que enche a nossa casa. A combustão é o gesto inverso da fotossíntese, a devolução luminosa daquilo que antes foi colhido do céu.

É por isso que aquele primeiro estalido da lenha parece sempre mais profundo do que um simples ruído. São paredes celulares a ceder, sim, mas é também uma memória a libertar-se. Cada faísca que salta é um fragmento de verão. Cada brasa é um resto de tarde luminosa que brilhou sobre a árvore e sobre nós.

Cada chama é uma frase escrita na linguagem elementar do carbono, a lembrar-nos que a luz que um dia recebemos continua aqui, renascida em fogo.
 
Guarda-se nos anéis de uma árvore como se guardasse numa caixa-forte as estações que vivemos ao lado dela. E um dia, quando a lenha arde na sala onde conversamos, a luz dessas estações regressa inteira, aquecendo-nos como nos aqueceu quando éramos outros. 

O fogo que nos ilumina hoje é o mesmo Sol que nos tocou na pele quando descobríamos o mundo. A lareira apenas revela o que sempre esteve lá. A energia de todas as primaveras e todos os verões que nos viram crescer, devolvida em forma de chama.

Quando acendemos a lareira, devíamos lembrar-nos de que cada tronco é um corpo inteiro de luz acumulada, anos de claridade tecidos em madeira.

E porque essa luz não se repete, porque cada árvore é um milagre irrepetível da paisagem, cabe-nos honrar o gesto de a queimar. Por cada chama que se eleva, deveria nascer uma jovem árvore algures no mundo, para continuar a escrever a história que aquela deixou por terminar.

Pois o fogo consome, mas a floresta renova. E se a lareira nos aquece hoje, é porque um dia uma árvore se deixou atravessar pelo Sol para o guardar no seu lenho. Agora é a nossa vez de devolver. Plantar é o modo humano de agradecer. É fazer regressar à terra a promessa luminosa que o tronco cumpriu. É garantir que as estações futuras terão onde pousar a sua claridade.

Que cada chama nos lembre isto: o fogo só é completo quando abre caminho a outra vida. Queimar madeira é aceitar uma herança de luz; plantar uma árvore é prolongá-la.

E assim, quando a próxima lareira for acesa, não teremos apenas um lar mais quente. Teremos também um mundo mais pleno, capaz de guardar novamente o Sol que um dia regressará, em forma de chama, para nos aquecer outra vez.
 

 

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O Azevinho e o Príncipe

Nas encostas sombrias onde a humidade se demora entre raízes ancestrais, como uma prece subterrânea, ergue-se o azevinho (Ilex aquifolium), eterno no seu verde que não se rende ao tempo. Em Portugal continental ele é relíquia e sentinela, remanescente de climas extintos, guardião de matas frescas onde o rumor do mundo cessa e dá lugar ao silêncio primordial da floresta.

Nas ilhas atlânticas outras vozes do mesmo género sussurram com ele. Na Madeira vive o perado (Ilex perado subsp. perado), mais macio na folha, mais moldado pela respiração húmida da Laurissilva. 
 
Também nos Açores existe o seu eco botânico, o perado-dos-Açores (Ilex perado subsp. azorica), moldado por brumas e ventos oceânicos. Todos são fragmentos de uma linhagem antiga, dispersos como notas de um mesmo poema vegetal. 
 
Em Portugal continental a distribuição desta árvore desenha uma mancha atlântica no Norte e Centro, encontrando refúgio nas serras húmidas, nos vales frescos, nos barrancos que guardam a sombra como se fosse um tesouro. 
 
A Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental classifica a espécie como de Preocupação Menor, mas reconhece que alguns núcleos isolados permanecem vulneráveis, pela rarefação do habitat e pela pressão de origem humana. 
 
Ao longo dos séculos, esta planta foi símbolo de poder. Os romanos associaram-lhe virtudes protetoras, os povos celtas viram nela um talismã contra a escuridão do inverno, presença sagrada nos bosques onde se celebrava o triunfo da vida sobre a noite mais longa. No Natal cristão, as folhas persistentes tornaram-se promessa de vida que renasce e os frutos brilhantes ecoaram a cor da esperança. 
 
Esta mesma beleza simbólica, tão fundida na sensibilidade europeia, acendeu nas últimas décadas uma procura quase febril de ramos, sobretudo na quadra natalícia. As mãos humanas, movidas por um desejo antigo de trazer o verde para dentro de casa, colheram sem medida, arrancaram sem pensar, descarnaram exemplares seculares. 
 
Assim, o encanto transformou-se em ferida. Muitos núcleos espontâneos foram mutilados, outros desapareceram, como se a própria floresta tivesse sido obrigada a apagar a sua luz para que a nossa brilhasse. 
 
Por isso a lei protegeu a espécie cedo. O Decreto-Lei n.º 423 de 1989 ergueu-lhe um escudo legal e proibiu o corte, arranque, transporte ou venda de exemplares espontâneos em Portugal continental, admitindo apenas exceções muito restritas. 
 
A tradição teve de aprender a conter a mão. Quem deseja ramos deve comprá-los a viveiristas credenciados, optando por plantas cultivadas legalmente e não colhidas na penumbra dos bosques. Assim a celebração não fere o que celebra e a memória da espécie permanece de pé na paisagem. 

A árvore gosta de sombra luminosa, de solos frescos, profundos e ácidos, de brisas suaves que a mantenham desperta. Adapta-se bem ao jardim quando lhe damos o lugar certo, crescendo com a lentidão digna de quem vive séculos. 
 
Tem um enorme talento enquanto ornamental. Existem variedades com folhas variegadas, salpicadas de creme, outras de verde quase negro, algumas de porte mais compacto e outras em que as margens se tornam menos armadas, deixando sobressair a elegância do contorno. 
 
O azevinho divide-se entre machos e fêmeas, plantas distintas que dependem uma da outra para cumprir o seu ciclo. Nos indivíduos masculinos o pólen liberta-se ao movimento do ar e ao toque diligente dos insetos que percorrem as flores em busca de néctar, sendo estes o principal veículo de polinização. 
 
As flores femininas, discretas e recetivas, esperam esse grão minúsculo vindo de uma planta masculina próxima, pois sem ele não haverá fecundação. Quando o pólen chega, inicia-se um processo lento e silencioso que culmina na formação dos frutos vermelhos que iluminam o inverno. A frutificação depende desta colaboração entre vento, insetos e proximidade entre plantas masculinas e femininas. 
 
Há, contudo, exceções curiosas no vasto mundo das variedades cultivadas. Alguns cultivares selecionados ao longo do último século revelam comportamentos distintos daqueles que se observam nas populações silvestres. 
 
Como o Ilex aquifolium ‘J.C. van Tol’, capaz de frutificar mesmo sem a presença de um macho por perto, e híbridos ornamentais, como Ilex cornuta ‘Burfordii’, conhecidos pela sua frutificação consistente quando cultivados isoladamente. 
 
Esta frutificação deve-se, em grande parte, à partenocarpia, um processo biológico em que o fruto se desenvolve sem que ocorra a fertilização dos óvulos. No caso do género Ilex, como sugerido por estudos recentes, muitos destes frutos surgem após o simples estímulo do pólen, mas sem que haja fusão dos gâmetas, formando-se assim drupas estéreis, desprovidas de embrião. São frutos que imitam o ciclo reprodutivo, mas não o completam. 
 
Estas variedades cultivadas, úteis para jardins pela sua frutificação fiável, não refletem o comportamento ancestral do azevinho nativo, que permanece inteiramente dependente da dança entre pólen, vento e insetos. São variações de jardim, exceções convenientes, mas estranhas ao compasso lento e rigoroso da espécie tal como existe na natureza. 
 
As folhas brilhantes e coriáceas guardam segredos mais subtis do que a sua aparência permite adivinhar. Nas zonas ao alcance dos herbívoros, erguem espinhos nítidos, lâminas vegetais feitas para dissuadir mandíbulas. 
 
À medida que a copa escapa aos dentes dos animais, essas armas abrandam, esbatem-se, desaparecem, como se a árvore finalmente respirasse sem a sombra da ameaça. Mas quando as mãos humanas insistirem em podá-la, impondo cortes sucessivos, ela responde como sempre respondeu à pressão do mundo à sua volta. Renova a couraça, faz nascer folhas armadas, devolve os espinhos aos lugares onde a vulnerabilidade voltou a existir. 
 
Esta plasticidade defensiva, hoje revelada por estudos epigenéticos e morfológicos, mostra que a árvore não esquece. Guarda a memória do que a feriu e inscreve essa lembrança no contorno das folhas, como se o corpo vegetal escrevesse a sua própria história em cada margem afiada que cria. 
 
As sementes, por sua vez, entregam-se a uma dormência profunda. Guardam dentro de si um embrião ainda incompleto, como uma promessa que precisa de tempo para aprender a ser árvore. Mantêm travões fisiológicos que as seguram no escuro da terra. Precisam de calor para começar a despertar e, depois, de frio para completar o seu renascimento. 
 
Este ciclo de estratificações, quente e depois fria, dura meses, por vezes anos. A germinação pode levar entre 18 e 24 meses, como se cada semente quisesse repetir a lentidão do próprio azevinho. Só quando o embrião se torna inteiro, quando o frio lhe dá a ordem suave para avançar, é que rompe a casca e sobe, devagar, em direção à luz. 
 
Sempre contei com o frigorífico como um aliado fiel, mestre a enganar as sementes, fazendo-as crer na chegada de um frio antecipado para que germinassem ao ritmo das minhas necessidades. 
 
O potencial terapêutico desta árvore inclui compostos fenólicos, triterpenos e outros metabolitos com atividade antioxidante e anti-inflamatória. 
 
Ensaios in vitro e em animais apontam para possíveis efeitos na proteção hepática e na modulação de parâmetros metabólicos, mas a evidência permanece preliminar e longe de qualquer recomendação clínica consolidada. Ainda assim, esta presença discreta de virtudes deixa-a no radar silencioso da investigação farmacognóstica. 
 
O nosso azevinho tem um parente distante e exótico, a erva-mate (Ilex paraguariensis), espontânea em vários países da América-do-Sul, de cujas folhas e ramos se prepara uma das bebidas mais reconhecidas do mundo, o mate ou chimarrão. Os povos indígenas Guarani estão entre os primeiros a venerá-la e cultivá-la, num tempo em que a paisagem existia sem fronteiras e só a floresta ditava limites. 
 
Mais tarde, missões jesuítas e produtores coloniais transformaram a planta numa cultura de grande importância económica na região do Paraná, do Paraguai e do norte da Argentina. Hoje a erva-mate é cultivada e colhida sobretudo nesses países, e a bebida circula pelo mundo, chegando a Portugal através de casas de chá, lojas especializadas e comunidades migrantes. 
 
Rica em cafeína, teobromina e compostos antioxidantes, esta infusão amarga e vigorosa aquece os dias e cria comunhão. O mate é celebração, ritual, partilha, talvez por isso agrade tanto ao espírito humano. 

No meu percurso enquanto viveirista e agricultor, tive o raro privilégio de cultivar esta planta protegida durante mais de duas décadas, propaguei milhares de azevinhos que hoje povoam parques e jardins do nosso país. 
 
Numa das parcelas de cultivo, reservada à delicadeza tropical da erva-príncipe (Cymbopogon citratus), ergui uma sebe monumental de azevinhos-fêmea. Era uma muralha verde, firme e paciente, que amparava a fragilidade daquela gramínea tropical de metabolismo C4, feita para o calor e a luz intensa, uma criatura da estação quente que prospera quando as temperaturas altas dominam os dias. 
 
Nos dias frios, porém, desfalece. Uma simples noite abaixo de zero basta para a queimar, porque o seu corpo vegetal foi moldado em climas onde o inverno quase não existe. 
 
Protegida por essa fortaleza viva, a erva-príncipe cresceu ao ar livre, ali onde tantas vezes o frio lhe poderia roubar a vida. Foi essa barreira de azevinhos que me tornou um dos poucos produtores nacionais capazes de a cultivar nestas condições, desafiando o clima e confiando na sabedoria das árvores para resguardar uma planta que, de outro modo, jamais suportaria o rigor atlântico. 
 
Entre os ramos de azevinho prosperavam famílias inteiras de várias espécies de aves, aliados famintos, sempre pronto a devorar quaisquer pragas que se quisessem instalar entre príncipes. Nunca tive de realizar qualquer tratamento nesta parcela de cultivo, que por sua vez agradeceu a proteção e produziu lotes para infusões e tisanas várias vezes premiados internacionalmente. 
 
Que casamento extraordinário, azevinho e erva-príncipe! Esta sebe viva, com pouco mais de 10 anos de cuidado, superou os 7 metros de altura. É uma das plantações mais notáveis da minha vida. 
 
Sob licença do ICNF, produzi e comercializei os seus ramos, oferecendo alternativas legais à procura natalícia. Fiz dessa produção um gesto de responsabilidade social. As coroas feitas com os ramos de azevinho ajudaram a comunidade a angariar milhares de euros para quem precisava. Cada ramo comercializado a partir de plantas cultivadas foi, para mim, também um ramo salvaguardado na natureza.
 
Falei desta árvore na televisão e em salas de aula, escrevi sobre ela, ensinei a respeitá-la. Conheço alguns exemplares de porte espantoso na natureza e em jardins urbanos, árvores fabulosas que guardam histórias mais longas do que muitas vidas humanas. 
 
Hoje há também zonas do Parque Nacional da Peneda-Gerês onde novos projetos de restauro ecológico, como iniciativas de recuperação de bosques autóctones, começam a criar condições para que espécies de sombra e de montanha, entre as quais o azevinho, reforcem a sua presença. 
 
O azevinho permanece como testemunho de resiliência e beleza, uma árvore que apenas deseja atravessar connosco o futuro, guardando na sua sombra a dignidade que o passado lhe confiou.
 

 





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Assim Falou a Planta

Quando descobri que a Mónica Gagliano viria a Lisboa a 15 de maio para a conferência Human Entities 2024 – A cultura na era da inteligência artificial, no Grande Auditório da Faculdade de Belas Artes, senti um chamamento súbito, como se uma força profunda, quase indizível, me conduzisse naquela direção. 

Parti com o coração acelerado, guiado por uma urgência que não era apenas curiosidade, mas o pressentimento de que algo em mim mudaria para sempre.

Demorei um ano e meio a reunir coragem para deixar que estas palavras ganhassem forma, para as fazer nascer na luz branca do ecrã, onde a memória se transforma em escrita e o tempo, enfim, se deixa contar. Só agora consegui intuir por inteiro a dimensão desta experiência, aquela dança de escuta, ciência e presença que mudou para sempre a minha forma de ver as plantas, o mundo e a mim mesmo.

O auditório estava repleto, a atmosfera vibrava de expectativa e, quando ela abriu a boca para falar, senti o ar tornar-se leve, como se o tempo tivesse decidido parar por instantes. As suas palavras não eram meramente científicas. Eram convites. Eram acordes de um universo que insiste em existir para lá do que julgamos percetível.

Ela falou de plantas como presenças discretas e vivas, de consciência vegetal, de diálogos silenciosos entre seres que respiram sem corpo de animal, mas com raízes de memória e sensibilidade. Eu, com o olhar de quem já aprendeu a escutar a terra, senti essa verdade pulsar dentro de mim como um eco ancestral.

A palestra terminou, mas para mim tudo estava apenas a começar. No final do evento, um convite inesperado levou-me até à mesa de um jantar onde o acaso, ou talvez algo maior, quis que ficássemos sentados lado-a-lado. Conversámos durante horas, atravessámos fronteiras de tempo e pensamento. E, nesse instante de pausa luminosa entre palavras, compreendi a delicada reverência que a ciência pode devolver ao mistério de existir.

Meses antes tinha comprado o seu livro Thus Spoke the Plant. Na altura era apenas mais volume na prateleira, um de muitos, na fila de espera de um leitor compulsivo. Depois, tornou-se um portal. O livro não é só investigação. É uma fitobiografia nascida em comunhão com as próprias plantas. 


A autora desafia a encarar as plantas não como meros objetos de estudo, mas como sujeitos de relação, dotados de perspetiva, urgência, memória, talvez vontade. A isso me agarrei: a ideia de devolver à botânica o espaço do mistério e da escuta, de permitir que as plantas não apenas sejam investigadas, mas convidadas a falar.

O livro mistura ciência, filosofia e espiritualidade. Entre capítulos leem-se conversas com povos indígenas, sabedoria ancestral, travessias de cultura e vivência sensível. A editora North Atlantic Books descreve-o como um testemunho de descobertas científicas e de encontros íntimos com o vegetal, uma jornada de transformação pessoal e científica.

Essa descrição pareceu-me justa, não como luxo literário, mas como o reflexo íntimo da metamorfose que o seu pensamento despertou em mim.

A parte do seu trabalho que mais me impressionou foi precisamente essa inversão de trato: permitir que as plantas surjam como interlocutoras, dar voz àquilo que sempre foi relegado ao silêncio das folhas. 


A Mónica não é apenas uma autora sensível. É uma investigadora séria. Teve a coragem de ser pioneira no que hoje se chama bioacústica vegetal, mostrando através de experiências publicadas com revisão por pares que as plantas podem emitir sons, mas sobretudo que conseguem detetar vibrações do ambiente e reagir a elas. 


Num dos seus estudos mais notáveis, trabalhou com a ervilheira (Pisum sativum) para revelar que as raízes eram capazes de pressentir uma fonte de água guiando-se apenas pelas vibrações do seu movimento, mesmo quando a terra à sua volta permanecia totalmente seca.

Quando a humidade surgia em conjunto com essas vibrações, as raízes inclinavam-se naturalmente para o gradiente húmido, mas as vibrações funcionavam como um anúncio antecipado, um sussurro subterrâneo que desenhava um mapa invisível antes de a água se tornar palpável.

Essa descoberta abriu um novo horizonte na fisiologia vegetal e deu corpo experimental à ideia de fonotropismo, o crescimento orientado por som e vibração, onde o mundo acústico se torna bússola para as plantas que exploram na escuridão do solo.

Outros estudos da Mónica exploraram a memória vegetal. Recorrendo à fascinante Mimosa pudica, uma espécie sensível ao toque, ela observou que, após repetidos estímulos inofensivos, as folhas deixavam de se fechar.

A planta habituava-se ao estímulo, o que foi interpretado como aprendizagem elementar. É uma provocação discreta à ideia de que aprender é só para seres com cérebro. Nesse gesto, a planta ensinava paciência, repetição, constância.

Mais ousada ainda foi a hipótese de aprendizagem por associação. Em experiências conduzidas com ervilheiras num labirinto em Y, a Mónica observou que as plantas pareciam capazes de relacionar estímulos que, à primeira vista, nada tinham em comum.

O fluxo de ar produzido por um ventilador e a direção da luz tornaram-se pistas entrelaçadas, como se as plantas intuíssem que vento e claridade caminhavam lado a lado na promessa de crescimento.

Essa pesquisa atraiu atenção e ceticismo, como é natural na ciência de fronteira. Alguns esforços de replicação não confirmaram os resultados e a comunidade científica sublinhou a necessidade de mais controlo e rigor. Ainda assim, o tema permanece vivo. A provocação não é certeira para todos, mas deixou a semente de uma nova pergunta sobre cognição vegetal.

Para mim, esse corpo de trabalho reintroduziu o espanto dentro da ciência e devolveu à investigação a sua dimensão de reverência. Não se trata de abdicar da precisão, mas de expandir a consciência científica até ao limiar do sensível, de acolher hipóteses que desafiam as certezas e de desenhar as experiências com humildade e generosidade.

E compreendi que a ciência, quando se aproxima do mundo com verdadeira humildade, não é um edifício de certezas imutáveis, mas uma arte de permanecer atento, de aceitar que cada pergunta abre um caminho novo e que nenhum muro é definitivo.

Guardo na memória o jantar, a mesa iluminada por candeeiros antigos, o ambiente de saudável tertúlia, o ruído gentil da conversa, as pausas cheias de significado. Falei do Porto, das minhas perpétuas-roxas, da plantação de chá, do tomilho bela-luz e da Santíssima Trindade que alberga no seu íntimo, do cheiro da terra molhada.

Ela falou das linguagens que sempre vibraram no coração das plantas, desses murmúrios subterrâneos que a ciência começa agora a pressentir, das raízes que tateiam o mundo, como antenas vivas a decifrar o invisível, da água que ensaia o percurso antes de o cumprir, da terra que responde como um corpo vivo. 


E, à medida que as suas palavras se desdobravam, senti que conversávamos muito para lá da superfície, como se trocássemos perguntas sem voz e escuta sem ruído, guiados por uma mesma curiosidade essencial.

Ao despedirmo-nos, arrisquei a pergunta que guardara até ao fim. Perguntei-lhe se nos reencontraríamos um dia. Ela olhou-me com a sua expressão doce e serena e disse que certos regressos não se forçam, acontecem quando a vida nos chama.

Talvez tenha sido nessa noite que compreendi verdadeiramente o alcance da sua obra. Escutar as plantas é aprender a escutar o mundo, não apenas com os ouvidos, mas com o corpo inteiro, com a respiração, com o coração. A ciência pode medir, pode quantificar, pode registar factos, mas só o coração percebe o que significa pertencer, pertencer a um mundo vivo, vasto, repleto de sentidos que ainda nos escapam.

Assim Falou a Planta e, através dela, reencontrei a poesia da ciência. Fiquei a saber que a curiosidade não é apenas um método de investigação, mas uma forma de amor. Que a verdadeira escuta acontece quando deixamos de procurar respostas imediatas, quando nos permitimos estar, inteiramente, diante do mistério do que vive.

Sei que este texto chega com um atraso de tempo, com o peso de dias, meses e incertezas. Talvez por isso mesmo esteja mais maduro, mais consciente. Hoje, 18 meses depois desse encontro, sinto que o eco desse 
momento ainda ressoa em mim e percebo quão valiosa foi essa demora.

Há quem leia Thus Spoke the Plant com deslumbramento e há quem o encare com cautela. É importante dizê-lo. O livro não é consensual dentro da comunidade científica e algumas das experiências que o sustentam continuam a gerar debate, dúvidas e tentativas de replicação que nem sempre chegam às mesmas conclusões.

A abordagem da Mónica não segue os caminhos ortodoxos da investigação clássica. Mistura dados experimentais com vivências íntimas, cruza ciência com escuta interior, convoca sabedorias que raramente entram nos laboratórios. E é precisamente aí que reside a sua força.

Apesar da controvérsia, há académicos que reconhecem no seu trabalho um gesto corajoso, um sopro necessário num campo por vezes demasiado rígido. Respeitam-lhe o arrojo, o risco, a capacidade de abrir perguntas onde muitos só veem fronteiras.

Talvez por isso este livro divida opiniões, mas nunca deixa ninguém indiferente. Reconheço que é deste impulso indomável que surgem as investigações que deixam marca.

Sei que há leitores que vão estranhar estas ideias, porque a história da ciência ensinou-nos a desconfiar de tudo o que nasce à margem. Mas vale a pena recordar que o mundo vegetal já teve os seus heréticos que, com o tempo, acabaram por se tornar mestres.

Darwin ousou sugerir que a ponta das raízes funcionava como um centro de perceção da planta e essa intuição ficou durante muito tempo ignorada e envolta em controvérsia, antes de ser retomada pela biologia moderna.

Jagadish Chandra Bose foi muitas vezes acusado de exagero e até de misticismo quando mostrou que as plantas exibem impulsos elétricos, e hoje é visto como um dos grandes pioneiros da eletrofisiologia vegetal.

Barbara McClintock falou de genes que se movem e viu o seu trabalho ser recebido com ceticismo e incompreensão, até que a biologia molecular confirmou as linhas essenciais das suas descobertas e lhe deu, muitos anos depois, o Nobel.

Lynn Margulis defendeu que as células eucarióticas, incluindo as vegetais, nasceram de simbioses antigas entre bactérias e a sua teoria foi sucessivamente rejeitada e criticada, até que o ADN de mitocôndrias e cloroplastos lhe deu razão e a transformou num dos pilares da biologia moderna.
 
Fica o convite. Leia Thus Spoke the Plant. Poucos livros abrem caminho para um entendimento das plantas tão íntimo e transformador. Acredito que a/o mudará como mudou a mim.
 
 





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Agricultura Regenerativa e ESG – Desafios e Oportunidades (2ª ed.)

A agricultura regenerativa está a afirmar-se como uma resposta decisiva aos desafios que enfrentamos: solos degradados, perda de biodiversidade, alterações climáticas e pressão sobre os sistemas alimentares.

Ao mesmo tempo, os critérios ESG tornam-se cada vez mais centrais para empresas que pretendem cumprir as exigências europeias, desde o European Green Deal à Estratégia do Prado ao Prato, garantindo transparência, resiliência e impacto positivo.

A convergência entre agricultura regenerativa e ESG abre hoje uma oportunidade única para as empresas portuguesas. Permite reduzir riscos ambientais, melhorar o desempenho climático, reforçar a relação com as comunidades e liderar a transição para modelos verdadeiramente sustentáveis.

Este programa de formação da Ordem dos Engenheiros do Norte oferece exatamente essa visão integrada.

Durante três módulos, os participantes irão compreender os fundamentos da agricultura regenerativa, explorar o enquadramento legal europeu e aprender a aplicar estes princípios em estratégias ESG robustas e alinhadas com as novas exigências regulatórias.

Se procura antecipar tendências, criar valor ambiental real e fortalecer a sustentabilidade do seu negócio, este curso é para si.

Serei eu o formador de serviço.

Datas: 13 a 16 de janeiro de 2026
Formato: e-learning (pós-laboral)

Preço:
50,00 € (membro)
25,00 € (membro estudante)
150,00 € (não membro)
 
Clicar nesta ligação para saber mais sobre o curso Agricultura Regenerativa e ESG – Desafios e Oportunidades (2ª ed.) 
 

 

 

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Quando o verde se torna visível

Stefano Mancuso afirma que existe no nosso cérebro um tipo de preconceito cognitivo, a que chama cegueira vegetal, que nos incapacita de perceber verdadeiramente o verde que nos envolve.

Descreve essa condição como um velho obscurecimento da alma humana, uma névoa antiga que se instalou no nosso pensamento desde os primórdios e que nos afastou da presença silenciosa das plantas. Segundo ele, carregamos dentro de nós um preconceito quase mineral, tão profundo quanto invisível, que nos impede de ver o mundo vegetal na sua plenitude. 

Olhamos para elas sem as ver, porque o nosso cérebro habituou-se a reconhecer apenas aquilo que se move ao nosso compasso, que respira no mesmo fôlego, que partilha o mesmo instinto urgente de sobreviver. As plantas, com o seu tempo profundo e a sua arquitetura paciente, tornaram-se para nós um pano de fundo quase impercetível, um murmúrio que não sabemos decifrar. 

Segundo Mancuso somos incapazes de ver plantas porque somos incapazes de as compreender. Só reconhecemos verdadeiramente aquilo que se assemelha a nós e as plantas são, desde sempre, a forma de vida mais distante do nosso espelho. São quietas no movimento, lentas no gesto, vastas naquilo que não mostram.

Por isso a humanidade aprendeu a ignorá-las. E essa cegueira atravessou séculos, alimentando a ilusão de que vivemos num mundo governado por animais, quando na verdade caminhamos sobre um planeta inteiramente moldado pelas raízes.

Durante muitos anos acreditei que esta cegueira podia ser curada. E, sem me aperceber, acabei por dedicar a minha vida a essa cura. Desde muito cedo senti que havia em mim um chamamento silencioso, uma espécie de fio subterrâneo que atravessou décadas de trabalho, estudo e assombro, conduzindo-me sempre de volta às plantas. 

O meu primeiro consultório foram os jardins do Parque de Serralves, quando fui contratado para gerir a sua equipa de jardineiros. Nessa altura descobri que ensinar alguém a olhar para uma árvore é uma espécie de milagre íntimo. A natureza devolve sempre mais do que aquilo que lhe damos. Ali aconteceram alguns dos primeiros workshops de jardinagem em Portugal, numa época em que falar de plantas era quase um ato de resistência sensível.

Ao mesmo tempo escrevia, estudava, recolhia histórias de folhas e perfumes e sonhava, como tantos headgardeners ingleses, com o dia em que poderia transformar o amor pelas plantas num objeto vivo que chegaria às mãos de outras pessoas. Esse sonho tomou forma em 2007, quando publiquei um DVD que foi pioneiro no país.

Um curso interativo, feito com a vontade de reunir o conhecimento de anos de prática, as imagens, o tato, o cheiro, a intimidade das plantas aromáticas. Foram vendidos milhares de exemplares. Colegas agrónomos usaram-no nas aulas de norte a sul. Jardineiros amadores aprenderam ali os primeiros passos.
 
O que começou como um gesto íntimo abriu caminho para muitos outros. Hoje parte desse trabalho repousa serenamente no meu canal de YouTube, à espera de continuar útil a quem precisar.

Ensinar tornou-se então um rio contínuo. Doze anos consecutivos de aulas no Jardim Botânico da Ajuda, em Lisboa, abriram caminho a uma vida itinerante como guia botânico da Associação dos Amigos do Jardim Botânico da Ajuda. Durante anos viajei com grupos de portugueses até Inglaterra, como quem conduz peregrinos a templos de luz vegetal.

Visitávamos os grandes festivais de jardinagem, como o Chelsea Flower Show e o Hampton Court, e alguns dos jardins ingleses mais sublimes, onde cada planta parecia conter um universo próprio em estado de promessa. 

Havia sempre um momento em que alguém, surpreendido, descobria que uma folha que julgava banal revelava tonalidades e brilhos nunca vistos. Nesse instante de maravilhamento eu reconhecia o primeiro sinal de que a cegueira vegetal se rendia. 

Foram centenas de palestras em escolas e universidades, em Portugal e além-fronteiras, um programa de rádio na Antena 1 onde falava de plantas como quem acende candeeiros na madrugada, e uma rubrica de oito anos na RTP, onde todas as manhãs procurava oferecer ao país um breve clarão de verde interior.

Desde 2008 escrevo também num blogue que é, ao mesmo tempo, diário, estufa e caderno de campo. Tudo isto foi crescendo dentro de mim como uma floresta que nunca para de germinar.

Mais recentemente, tenho caminhado com grupos pelos jardins, guiando visitantes nas Derivas do Museu do Porto, à procura das árvores que a cidade esqueceu. Nestes passeios vejo a transformação acontecer diante dos meus olhos.

Há sempre alguém que, de repente, reconhece a velha forma de um carvalho, o perfume discreto de um loureiro, a sombra de uma tília que sempre esteve ali. E esse instante tem qualquer coisa de revelação.

Ao longo de todas estas décadas foram milhares as pessoas que vi despertar para a presença das plantas. Milhares que deixaram de ver apenas verde e começaram a distinguir texturas, geografias, biografias vegetais.

Milhares que aprenderam a sentir que cada planta é um mundo inteiro, não um adereço do cenário. Cada um desses olhares renascidos é para mim uma vitória da humanidade, uma respiração mais funda, uma rachadura luminosa na velha cegueira vegetal.

Talvez seja esta a minha forma de amar o próximo. Ajudar alguém a ver aquilo que sempre lá esteve. Ensinar que a Terra fala em silêncio e que basta inclinar o espírito para escutar. Há quem procure milagres em céus distantes. Eu encontro-os no instante em que alguém pronuncia o nome de uma árvore como se o dissesse pela primeira vez.

Como na letra da maravilhosa canção dos Primal Scream, Movin on Up
 
I was blind, now I can see 
You made a believer out of me 
 
(deixo a ligação para ouvir quando terminar de ler este post, vale muito a pena!).

É nessa faísca de entendimento, tão simples e tão profunda, que encontro o cerne da minha vida profissional. A minha missão foi, e continuará a ser, curar a cegueira vegetal. Uma cura feita de paciência, delicadeza e espanto. 

Uma cura que devolve ao mundo aquilo que lhe pertence por direito, a consciência do verde que nos sustém, nos alimenta, nos inspira e nos recorda que ver é, acima de tudo, um ato de amor. 

Penso muitas vezes no destino invisível destas sementes que fui lançando ao longo dos anos. Imagino o que terão germinado na quietude íntima de quem me leu, de quem me escutou. Porque não há maior maravilha do que saber que, em algum lugar, alguém começou a ver o mundo com um olhar novo. Não por minha causa apenas, mas porque caminhou ao lado de muitos que dedicaram a vida a desfazer esta antiga cegueira vegetal. 

Talvez seja esse o verdadeiro milagre. Não o meu deslumbramento diário perante o verde, que me salva sempre, mas o deslumbramento de quem aprende a ver depois de uma vida inteira a passar ao lado das plantas como quem passa ao lado da luz. E quando isso acontece, mesmo que eu nunca saiba o nome dessa pessoa, sinto que uma porta secreta se abriu no mundo. 

Porque cada olhar que desperta acrescenta um clarão ao planeta. Cada pessoa que aprende a ver uma árvore como um ser inteiro, uma folha como uma revelação, uma raiz como uma história, devolve dignidade ao lugar onde vive. É assim que o verde se expande. É assim que a Terra respira de novo.

E se, entre aqueles que me acompanharam ao longo do tempo, houver quem tenha descoberto esta nova nitidez, quem tenha aprendido a ver onde antes nada via, então tudo valeu a pena. Porque um só olhar iluminado tem o poder de transformar para sempre a paisagem interior que carrega.

Talvez o futuro comece assim. Por um despertar. Por um gesto. Por um instante. Por alguém que, de repente, encontra no mundo vegetal a clareza que sempre lhe faltou.

E nesse instante, breve, mas infinito, o mundo torna-se aquilo que sempre foi. Vivo. Luminoso. Irrepetível. E, no âmago de tudo, verdadeiramente humano.
 

 

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Ginkgo biloba, anatomia de um outono

O ginkgo (Ginkgo biloba) é uma árvore que parece trazer o passado inteiro inscrito no tronco. Habita o mundo como o último sobrevivente de uma linhagem antiga, tão antiga que assistiu ao desenho dos continentes, às montanhas que se ergueram e se desfizeram, às florestas que se sucederam como capítulos longos da história da Terra.

A linhagem a que pertence nasceu muito antes dos dinossauros caminharem sobre o planeta. A espécie atual não será tão antiga, mas carrega no corpo a morfologia desse passado remoto, como se guardasse consigo a lembrança viva de um mundo primordial.

Por isso lhe chamam fóssil vivo, não por estar presa ao passado, mas por o trazer consigo, com uma serenidade guardada na lentidão de quem vive para além das pressas humanas.

Pode viver mais de 1.000 anos, e alguns exemplares, em regiões da Ásia, ultrapassam largamente esse limiar de longevidade. Em Portugal, quem for passear no Jardim das Virtudes encontrará o exemplar mais antigo do país, uma árvore que parece manter a cidade do Porto num gesto de proteção discreta.

E do outro lado do mundo, no Japão, 6 ginkgos tornaram-se símbolo da resiliência humana e vegetal. Em Hiroshima, após a explosão atómica que devastou a cidade e ceifou mais de 140.000 vidas, estes ginkgos rebentaram de novo no ano seguinte, como se a natureza ali se recusasse a aceitar o fim e decidisse renascer. 

No presente, o ginkgo espalhou-se pelo mundo como árvore ornamental, pelo porte harmonioso, pela copa aberta ao céu e pela resistência a pragas e poluição. Quem caminha nas ruas ou parques pode reconhecê-lo pela arquitetura da copa e, sobretudo, pela singularidade das folhas.

Pequenas lâminas em forma de leque, com nervação dicotómica, um desenho tão invulgar entre as árvores modernas que parece obra de um artesão paciente. São folhas que guardam uma luz própria, mesmo antes de amarelecerem.

Mas nem tudo é leveza na vida desta árvore antiga. O ginkgo é uma espécie dióica, com exemplares masculinos e femininos. É nas fêmeas que repousa um segredo olfativo difícil de esquecer. Quando o outono avança e os ovários carnosos atingem a maturação, deixam-se cair no solo libertando um odor acre e persistente, um aroma tão intenso que parece escapar de uma gaveta fechada há décadas, onde peúgas usadas, que nunca foram lavadas, repousam esquecidas, sem que ninguém se atreva a decidir o seu fim.

É o ácido butírico, libertado pela polpa, que compõe esta assinatura indelével. Há beleza e lógica até neste odor extremo. Aquilo que ao ser humano parece repugnante terá sido, para vários animais, um convite. O cheiro forte foi provavelmente, em tempos pré-históricos, uma estratégia para os atrair, encarregando-os de dispersar as sementes.

A árvore, tão antiga como a própria evolução da Terra, encontrou assim uma forma engenhosa de perpetuar a descendência num mundo onde os seus parceiros originais já não existem.

E, contudo, por mais histórias que o ginkgo traga nos ramos, nenhuma delas ultrapassa a que o torna verdadeiramente único entre as árvores caducifólias. É no instante da queda das folhas que a árvore revela o seu maior segredo.

O ginkgo entrega-se ao outono como quem acata um pacto firmado há milhões de anos. As suas folhas não são agulhas nem escamas endurecidas, como as das coníferas clássicas. São lâminas largas, frágeis perante a geada. Para sobreviver, a árvore precisa de as abandonar. Mas fá-lo de uma forma tão precisa, tão antiga, tão perfeita, que parece uma coreografia e não uma mera resposta biológica.

Enquanto outras árvores deixam cair as folhas ao longo de semanas, num descompasso natural entre química e vento, o ginkgo trabalha em silêncio, na penumbra das horas. Na base de cada folha forma-se uma camada de abcisão, uma zona de células que dia após dia se reorganizam, afinam, criam uma fronteira.

A árvore prepara a despedida com a paciência de quem conhece o tempo. Não há pressa. É a própria estação que lhe molda o avanço, enquanto a luz declina e o frio aperfeiçoa, passo-a-passo, o trabalho minucioso da despedida.

E então chega aquele breve momento, que ninguém vê nascer, mas todos reconhecem depois. Os milhares de folhas, amadurecidas em uníssono, alcançam o limite da sua própria delicadeza. Basta um sopro mais frio trazido pela madrugada, para quebrar quase em toda a copa o ténue vínculo que ainda as prendia.

O frio não provoca o processo, apenas abre a porta que a árvore vinha a preparar há semanas. E num só gesto silencioso, como quem devolve ao mundo um tesouro sagrado, o ginkgo solta todo o seu ouro e abandona o outono. 

Num dia, a copa é densa, luminosa, cheia. No seguinte, o chão transforma-se num tapete dourado, um clarão breve, mas intenso, espalhado pela terra. Os ramos ficam nus como se a árvore tivesse exalado a última luz do ano. Não é dramatização. É exatidão biológica. É a precisão de uma espécie que aprendeu a viver afinada com os ritmos ancestrais do planeta.

Assim é o ginkgo. Uma presença antiga feita de pura quietude. Uma árvore que não deixa cair as folhas ao acaso. Espera o momento exato em que o seu corpo inteiro concorda que a estação mudou. E então deixa que o amarelo se desprenda quase todo de uma só vez, como se quisesse mostrar que a beleza pode ser, também ela, um ato final de perfeita sincronização.
 

 

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Círculo da Vida

Hoje voltei ao velho edifício do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), como orador convidado dos Seminários Científicos de Terapias Complementares em Saúde, para apresentar a palestra “Perspetiva Histórica e Consumo de Plantas Aromáticas e Medicinais em Portugal”.

A sala onde decorreu o evento é um belo anfiteatro de madeira, com escadarias polidas pelo tempo e pelas gerações que ali se formaram. Sentei-me durante instantes num dos lugares da primeira fila e deixei que o silêncio da sala me envolvesse, um silêncio que parece guardar ecos de vozes, passos e pensamentos dos que ali passaram antes de nós.

Quando me aproximei da janela, entrevi a porta principal do hospital de Santo António. A mesma porta por onde saí nos braços dos meus pais, recém-nascido, há 53 anos. Pressenti o círculo que a vida, com a sua estranha sabedoria, parece por vezes traçar sem aviso. Partilhei esta curiosidade com a plateia logo no início, porque certos instantes merecem ser anunciados.

No final da sessão, entre a delicadeza habitual da audiência, com gestos e palavras de agradecimento, o querido Professor Jorge Machado olhou para mim, com aquela serenidade profunda que só os verdadeiros mestres possuem, e disse que ‘a minha vida, desde o instante em que atravessei aquela porta, até ao dia de hoje, se desenrolara de forma incrivelmente bela e produtiva’.

As palavras do Professor abriram dentro de mim uma clareira funda. Num simples gesto de voltar o olhar para a rua, senti a minha própria vida desenrolar-se inteira diante de mim, década após década, como se o tempo cedesse, por fim, ao seu próprio peso.

Recordei o menino que fui e o jovem que buscava um caminho entre plantas e livros. Vi o adolescente, aluno interno na Escola Agrícola de Santo Tirso, um rapaz da cidade a aprender o ritmo do campo, o corpo vivo da terra e a linguagem secreta das estações.

Revi o jovem adulto que se deixava maravilhar pelos vales e horizontes de Trás-os-Montes, enquanto estudava Engenharia Agronómica na UTAD, percebendo enfim que aquela vocação que julgava apenas a ganhar forma tinha, afinal, sempre estado ali, guardada como uma força antiga, à espera do seu momento para despertar.

Vislumbrei o encarregado geral dos jardins de Serralves, nos primeiros anos de vida profissional, a encontrar no desenho da paisagem uma disciplina exigente e uma forma de pensamento que me acompanhariam para sempre.

Vi o homem que se fez agricultor, moldando o futuro com as mãos e com as plantas que ainda hoje caminham comigo como companheiras de jornada. Vi o consultor que, agora, ajuda as empresas a reencontrar a natureza e a abrir nela caminhos de regeneração e sentido.

Surgiram os rostos, lugares, vozes, viagens e projetos que me reinventaram ao longo do tempo e que continuam a devolver-me, de forma inesperada, novas maneiras de estar no mundo.

E senti algo que me tocou fundo. A consciência de que todos estes capítulos, somados, formam uma existência abundante, intensa, surpreendente. Nada se perdeu. Nada foi em vão. Cada gesto plantado ao longo do caminho regressou agora, por um segundo, reunido num só fôlego. Saí do anfiteatro com o coração quente e uma gratidão imensa. A vida concedeu-me muito.

Concedeu-me pessoas generosas, paisagens que ficaram gravadas para sempre, desafios que me obrigaram a crescer e uma profissão que se tornou destino. Ao vislumbrar novamente a porta do hospital de Santo António, compreendi que regressar simbolicamente ao ponto de partida não foi um retorno, foi uma revelação.

Foi perceber que tudo, desde o primeiro dia, estava à espera de ser vivido desta forma. Hoje senti isso com clareza. E é difícil imaginar maior privilégio. Regressei a mim comovido, como quem regressa da viagem de uma vida inteira.

O Professor tinha razão. A vida tem sido belíssima, inesperada, generosa. E hoje, diante daquela porta que marcou o primeiro passo do meu caminho, percebi a extensão da minha gratidão. Por tudo o que vivi. Por tudo o que aprendi. Por tudo o que ainda está por vir. Por cada pessoa que, ao longo das décadas, me ajudou a despertar para o que verdadeiramente importa. 

Regressei a casa com o coração cheio, sabendo que há instantes que nos revelam com clareza a beleza de ter vivido. Hoje foi um deles.
 





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Mandrágora - a mais humana das plantas

A mandrágora (Mandragora autumnalis) é uma espécie mediterrânica que permanece rente ao solo, surgindo no início do outono quando as primeiras chuvas quebram a secura estival e reativam a vegetação do sul do país.

Cresce em locais secos e luminosos, onde o calor parece não ter fim e o inverno chega apenas como um sopro. As suas folhas formam uma roseta larga e espessa, e as flores lilases abrem discretamente entre as pedras, quando a terra se torna fria e húmida. 
 
O seu nome vem do grego antigo mandragoras, termo de origem discutida e que alguns autores aproximam do persa mardum giya, planta de homem. Desde a Antiguidade que esta designação evoca a forma humana das raízes, muitas vezes bifurcadas e retorcidas como membros de um corpo enterrado.
 
Talvez por isso a mandrágora tenha atravessado séculos envolta em superstição e fascínio, guardando na sua morfologia uma semelhança inquietante que o imaginário nunca deixou esquecer. 
 
Nesta época do ano, nos poucos lugares onde ainda resiste, deve estar em floração, silenciosa e escondida, guardando o segredo de séculos. Esta é uma das plantas que mais gostaria de encontrar na natureza do nosso país. 
 
Em Portugal continental, a mandrágora é rara e encontra-se confinada a pequenos refúgios do Alentejo e do Algarve. A Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental classifica-a como Em Perigo, com apenas nove núcleos populacionais conhecidos e cerca de 400 indivíduos maduros. 
 
As populações estão isoladas, separadas por terrenos agrícolas e estradas, e ocupam uma área de apenas 60 km². Sobrevive em pousios, bermas de caminhos e margens de campos de sequeiro, onde o solo é básico, argiloso ou calcário. Estes lugares discretos, esquecidos pelo tempo e pela pressa, são os últimos refúgios da espécie em Portugal. 
 
O Herbário da Universidade de Coimbra regista exemplares colhidos por Jules Alexandre Daveau em Grândola em abril de 1880 e por Heinrich Moritz Willkomm em Málaga em novembro de 1844, testemunhando a continuidade peninsular da espécie e a sua ligação profunda ao Mediterrâneo. 
 
São memórias em papel que falam de uma planta antiga e de uma relação longa entre a terra e o homem. A mandrágora é uma herdeira de um passado mágico e científico. 
 
Os herbários antigos, como o De Materia Medica de Dioscórides e o Hortus Sanitatis de Mainz, representavam-na com corpo humano e folhas como cabelos, sorridente e quase consciente de si, sinal do poder que lhe atribuíam. 
 
Nessas ilustrações, a planta surge humanizada, como se possuísse alma própria. A iconografia medieval e renascentista perpetuou esta imagem híbrida, fundindo ciência e superstição, e deu à mandrágora uma forma imortal. 
 
Nos textos bíblicos também é recordada. No Génesis, o termo hebraico dudaím é traduzido como mandrágoras, associadas à fertilidade e ao desejo, plantas que Lea e Raquel disputam como talismãs de amor. Essas referências moldaram a perceção simbólica da planta no mundo mediterrânico e explicam o seu prestígio nas culturas posteriores. 
 
A etnobotânica da mandrágora é feita de ciência e superstição. Desde a Antiguidade que lhe atribuem propriedades medicinais e poderes místicos. A raiz concentra alcaloides tropânicos como a escopolamina, a hiosciamina e a atropina, substâncias capazes de atuar sobre o sistema nervoso e provocar sonolência, euforia ou delírio, conforme a dose. 
 
Por isso foi usada pelos médicos gregos e romanos como anestésico rudimentar, sedativo e auxílio para induzir o sono, sempre com o risco de uma dose excessiva se tornar fatal. Acreditava-se também que promovia a fertilidade e curava esterilidades, crença que se espalhou pelo Mediterrâneo e atravessou séculos de tradição popular. 
 
Mais do que os seus efeitos farmacológicos, foi a forma humana da raiz que alimentou o mito. As bifurcações lembram pernas e braços, como um corpo modelado pela terra, e essa semelhança deu origem a narrativas que misturam temor e fascínio. 
 
Em várias regiões da Europa, as mandrágoras eram tratadas como pequenos seres domésticos, guardadas em cofres, lavadas em leite e alimentadas com vinho, na convicção de que protegiam a casa e traziam fortuna. 
 
Os rituais de colheita revelam a força dessas crenças. Dizia-se que a planta gritava quando arrancada e que o seu grito podia matar. Para evitar esse destino, amarrava-se a raiz a um cão negro, afastando-se enquanto o animal a arrancava e sucumbia no lugar do homem. Neste imaginário, a mandrágora tornou-se símbolo de poder, morte e renascimento, uma fronteira tensa entre o sagrado e o profano. 
 
Durante a Idade Média e o Renascimento, entrou nos unguentos e poções descritos em herbários como o Hortus Sanitatis ou o Le Livre des simples médecines. 
 
Misturava-se com óleos e plantas narcóticas, e acreditava-se que as bruxas a aplicavam sobre o corpo antes dos seus voos noturnos. Surgia como remédio e feitiço, cura e perdição, mantendo o seu papel ambíguo entre medicina e magia. 
 
Os seus fragmentos eram ainda usados como amuletos de fertilidade ou proteção, guardados em tecidos ou suspensos nas portas, prolongando o simbolismo da raiz antropomórfica. 
 
Hoje, a ciência olha para a mandrágora com igual fascínio e prudência. Os alcaloides que outrora sustentaram a sua reputação mística são agora base de medicamentos modernos. 
 
A atropina é usada em colírios oftalmológicos para dilatar as pupilas e tratar inflamações, a escopolamina previne enjoos e é administrada em adesivos transdérmicos, e a hiosciamina atua como antiespasmódico em vários contextos terapêuticos. 
 
A farmacologia moderna confirmou a potência destes alcaloides tropânicos e reconheceu também o perigo que representam, lembrando que na mandrágora o remédio e o veneno são apenas expressões diferentes da mesma substância. 
 
Em Portugal não existe qualquer utilização médica regulamentada desta planta e a investigação publicada sobre Mandragora autumnalis permanece sobretudo fitoquímica ou pré-clínica, desenvolvida maioritariamente no estrangeiro. 
 
Ainda assim, estudos internacionais têm revelado atividades antioxidantes, antimicrobianas, antidiabéticas e antitumorais nos seus extratos, exploradas apenas em modelos experimentais. 
 
Apesar desse potencial, a mandrágora continua fora de qualquer uso médico aprovado. A sua toxicidade, a janela terapêutica estreita e a ameaça que representa a colheita de populações naturais pequenas e vulneráveis explicam a prudência que hoje a envolve, entre a promessa e o risco, entre a ciência e a preservação. 
 
Na literatura, mitologia e cinema a mandrágora aparece como símbolo primordial. Além das referências bíblicas, ressurge na cultura moderna em sagas como Harry Potter, onde as raízes gritam quando arrancadas, ecoando a lenda europeia, e são usadas em Herbologia na escola de Hogwarts como remédio que devolve a vida aos petrificados. 
 
No cinema alemão o filme Alraune (1952) dá-lhe corpo humano e transforma-a em figura de sedução mortal. Na música, a banda Iron Maiden evoca-a na canção Moonchild, onde o grito da planta surge como símbolo de força e destruição, e o tema Mandrake Root, de Deep Purple, retoma o nome como metáfora de poder e feitiço. 
 
A arte e o cinema modernos perpetuaram o mito. Em 2006, O Labirinto do Fauno, de Guillermo del Toro, devolveu a mandrágora ao imaginário contemporâneo. No filme, a mãe da protagonista, Ofelia, guarda uma pequena raiz em forma de feto submersa num prato de leite, alimentando-a com gotas de sangue. 
 
A mandrágora transforma-se em símbolo de fertilidade, cura e proteção, um elo entre o humano e o mítico, entre a vida e a morte. A cena tornou-se uma das mais belas metáforas cinematográficas da relação ancestral entre o homem e a natureza.
 
E assim, entre música, mito e ficção, a mandrágora continua a atravessar épocas e linguagens, sempre presente no imaginário coletivo. 
 
Desde criança, a mandrágora habita o meu imaginário. Nos anos oitenta via na televisão a série Os Defensores da Terra, e Mandrake, o mágico, era uma das personagens principais. O nome vinha da planta e do mito, e a figura elegante de Mandrake, o hipnotizador, parecia prolongar o encanto perigoso da raiz humana. 
 
O comércio não regulado de sementes e raízes para fins esotéricos continua a ocorrer na internet, como ocorre com muitas plantas raras e simbólicas. Desaconselho a colheita ou o cultivo desta planta, recordando que as populações portuguesas são pequenas, fragmentadas e frágeis. 
 
A colheita ameaça o equilíbrio ecológico e reduz as possibilidades de recuperação da espécie. O caminho mais prudente é o cultivo ex situ, em jardins botânicos ou centros de conservação, sob licenças científicas e fins educativos. 
 
Não há programas exclusivos dedicados à proteção da mandrágora em Portugal, mas as ações de conservação da flora autóctone incluem a sua monitorização e proteção de habitat, especialmente nas zonas do Alentejo onde ainda subsiste. 
 
Tenho muitos sonhos por cumprir, um deles seria criar em Portugal um jardim dedicado às plantas tóxicas e mágicas, inspirado no Poison Garden de Alnwick, no norte de Inglaterra. Este jardim, inaugurado em 2005 por Jane Percy, Duquesa de Northumberland, é uma das coleções botânicas mais visitadas do Reino Unido. 
 
Guardado por portões de ferro negro, abriga mais de 100 espécies venenosas, incluindo cicuta, beladona, ricina e ópio. As visitas são sempre guiadas, e o público é advertido à entrada de que tocar ou cheirar algumas plantas pode ser fatal. A pedagogia do perigo transformou-se ali em arte e ciência, e o jardim tornou-se símbolo da curiosidade humana e da reverência pela natureza. 
 
Recebe anualmente dezenas de milhares de visitantes e é hoje uma atração de fama internacional. Num espaço assim, a mandrágora teria o seu trono discreto, não pela sua fama sinistra, mas porque nela se cruzam o mito, a ciência e a beleza. 
 
Vejo-me a descer um caminho de terra no Alentejo enquanto o sol se afunda atrás das azinheiras. O cheiro a terra molhada sobe do chão como um convite. Entre as ervas dobradas pelo vento, procuro a roseta que talvez ainda resista. Não sei se a encontrarei, mas continuo. É essa procura que me move. 
 
E se um dia a vir, sei exatamente o que farei. Sentar-me-ei ao seu lado, em silêncio, como quem reencontra algo que sempre conheceu. Não a colherei. Ficarei apenas a contemplá-la. A mandrágora não precisa de ser minha para me pertencer. A sua beleza está em existir, em desafiar o desaparecimento, em sobreviver onde quase nada sobrevive. 
 
Nesse instante, talvez perceba que o que procuro nela é o que procuro no mundo: algo que nos una à terra sem a possuir, algo que nos devolva a sensação de maravilha que fomos perdendo. 
 
E então saberei que a mandrágora é mais do que uma planta rara. É o testemunho de uma memória antiga, onde mito e realidade se abraçam para nos recordar que o sagrado nunca desapareceu, apenas se escondeu onde menos olhamos.
 

 

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